Passagem do Cabo

Maria Ondina Braga esteve em Malanje na mesma altura em que, miúdo, por ali andava, filho de solicitador. Quando a guerra começou, e com ela o cortejo de atrocidades e de rancores incendiados, estávam ambos presentes, ignorando-nos, e sem que a vida nos desse sequer a oportunidade do aproximar. Hoje, um sábado frio, ela morta, eu ainda por aqui, leio-a, folheando-o, como se na ânsia de a encontrar, um dos seus livros. ei-la, enfim, num passeio ao Lombe, com as professores do Colégio das Madres, o mesmo onde ensinou português. Entusiasmada, ela que nascia viva em cada ser, a falar da terra meditativa e úbere, extática e exuberante, das galinhas de Angola, do céu cravejado de estrelas, a estrada povoada de buracos enlameados. Como tudo isso me faz sentir só! Apátrida, filho de uma terra de que não me reconheço, acampado na vida, com os que me restam do álbum desbotado de uma família que desabou, leio-a para me reconhecer: «meu destino é passar».

Uma vida só

Creio que não cometo uma inconfidência ao revelar que a Isabel Mendes Ferreira, a que conhecemos, entrevistou a Maria Ondina Braga. E teve a sensibilidade de descortinar na sua escrita «um discurso claro, doce, misterioso, algo panteísta, onde o lugar das pessoas vem primeiro que a ordem ds coisas». Quantas vezes me revejo, ao lê-la, nessa sua escrita singular, naquele modo de se viver só, ainda que não sozinho.