Tempo de confissão


Ainda a SEMA, agora a n.º 4, o texto de Maria Ondina Braga e o desenho de Margarida Madaíl.

«Querida Isa: Invento-te aqui, agora, às onze e meia da noite de um Janeiro enluarado e gélido, na casa que me deixou a avó e que se esfarela roída pela formiga branca. O terrível insecto, que se supõe exclusivo dos trópicos, há muito tomou conta deste arrabalde da cidadezinha onde nasci e nenhum veneno consegue exterminá-lo. Os chalés brasileiros, por vezes casarões de dois pisos e águas-furtadas, entortam grotescamente por aí acima: a cabeça à banda dos telhados, o olho mirolho das sacadas, a perna manca de um alpendre. No quarto do Pedrinho, por enquanto também o meu, da janela virada a nascente só se podem abrir as portadas: do lado de fora, alastrando-se pela vidraça, avulta uma espécie de tumor penhascoso, o ninho, o núcleo dos nossos invisíveis atacantes, e os alicerces do rés-do-chão vão aluindo ao longo da fachada. Nessa colmeia · não ousamos nós mexer. Dizem que, se lhe mexêssemos, a praga se espalharia, não podíamos mais aqui viver. Dizem ainda que, das raras vezes em que chove e dá sol ao mesmo tempo, estão as feiticeiras a pentear-se, a raínha do enxame morre subitamente, a sociedade termiteira decompõe-se, anarquiza, fácil libertarmo-nos espetando ali, rápido, um prego em brasa. Histórias da carochinha! E como? Se chuva e sol ao mesmo tempo não duram mais que um instante? Na rua, o silêncio a esta hora é de longe em longe cortado pelo rodar de um automóvel, que o último autocarro passou às dez, ou por miados de gatos da vizinhança. E pela neve. Está a gear lá fora, geada preta, o alcatrão da estrada envidraçado. Cá dentro, o silêncio seria perfeito, não soubesse a gente desse sorrateiro .e infindável exército a errar pelo labirinto dos roda-pés, as ombreiras das portas, os secos das varandas, a minar as raízes fundas da casa na colina, a esburacar-lhe as quatro fontes da quadrada cabeça- até que, em dia de disparado vento, amanheçamos todos vestidos de poeira, o silêncio consumado, o silêncio total de campo-santo. Minha avó costumava bater com os nós dos dedos nos lambrins de cana da sala-de-jantar: "Oh, Inimigo! Eu vos esconjuro, destruidor fantasma!" A casa: dote dos padrinhos residentes no Pará, que ela nunca conheceu pessoalmente. Orfã, minha avó instalou-se aqui com uma criada velha, aos quinze anos, e começou a bordar o enxoval. Então, na noite de núpcias, desejando oferecer delicadamente ao noivo uma bebida, dirigiu-se à arca de castanho, levantou o tampo, tirou uma toalhinha, soltou um grito: todo o bragal, toalhas adamascadas e de baínhas abertas, naperons bordados a ponto- -de-cruz e a Richelieu, tudo furado de baixo a cima, um crivinho em espiral, como a escada em caracol hoje intransitável da torrinha. "Oh, inimigo! Oh, fantasma destruidor!" A verdade é que ninguém ouve os vorazes bichos. Apenas, de onde em onde, o estalido da madeira e o folhear do caderno em que te escrevo. O João deve dormir a sono solto, tal o menino no quarto. do medonho e empedernido favo. Finalmente decidida, desci pé ante pé, sentei-me à secretária com lápis e papel -lápis não resiste, vai-se apagando com os anos - e principiei a escrever-te, a sentir-te a presença reconfortante.
Perguntarás por que te nomeio Isa e não Isabel ou Isaura, como se pronunciasse só metade do teu nome. Escolhi Isa precisamente pela brevidade da palavra, um sopro, digamos, um suspiro. Chamo por ti sem bem chegar a chamar por ninguém. E se anteponho ''querida'' não é por afectação nem desfastio, antes por uma teimosia, uma saudade de amar. Desesperado apelo este "querida". Igual à vida que imito viver. Igual à minha alma hirta e oca como árvore morta. »

Quartos alugados

A gentileza do João Miguel Barros trouxe-me esta pequena nota escrita por Maria Ondina Braga publicada no n.º 2 da revista SEMA que com a Maria José Freitas publicou entre 1979 e 1982 e que se pode encontrar aqui.


«Sejam novos ou antigos, têm todos o mesmo cheiro, e angustiante. 
As cadeiras, reles, obra de feira, chiam quando nos sentamos, a ameaçar ruír. A gente instala-se lá muito direita, sem vontade de ficar. Se queremos ler um bocado, é afundados na cova da cama, de colchão gasto. As ·almofadas, de folhelho ou desperdícios de nylon, trilham-nos as fontes como papel encarquilhado. 
Mobília de quartos alugados é de verniz brilhante com metais amarelos, ou de aglo­merado de madeira e placas de fórmica. Há uma roda branca no tampo do psiché, de alguma cafeteira a ferver ou - quem sabe? - de malga de bochecho para boca inflamada. E falta falar na carpete rompida, o cotão das gavetas, uma baratinha, lesta, ao entardecer. 
Naquele quarto longe, de cinquenta patacas, nem móveis havia, salvo a preguiceira de palha e a cama de bambú. Escrever era nos joelhos sobre um dicionário. Um corredor estreito com seis desses cómodos e na cave a lavandaria: o zum-zum das máquinas como se o mar passasse por baixo. Mas, no pátio de terra calcada, todos os anos uma acácia se abria em flor. Lá para os fins de Março uma aragem tépida frisava o mosquiteiro de renda tra­zendo para dentro pólen e perfume.
Dessa meia dúzia de cubículos, agora habitados só por professoras, corriam no colégio histórias medonhas: que ali, dantes, dormiam as internas mal-comportadas, as viciosas, as namoradeiras - no hall da entrada a vigilante alerta. Que algumas saltavam de noite para o pátio, uma até fugiu, uma até tentou suicidar-se. Quem mais coisas contava - vejam lá! - era a criada muda de nascença e de gestos exuberantes. Quando a directora mandou pôr grades nas janelas, as moças acordaram a cidade aos gritos. Tudo isso tinha sido há muito tempo. Lembrava-se a muda com setenta anos e outra que levava os dias a chupar num cachimbo. A marca dos ferros lá estava, nas vergas de pedra. 
Quartos alugados guardo-os na memória dos mais diversos sítios. Aquele onde a neve se amontoava na vidraça, o edredão a coar penas de pato pelas costuras, o despertador a apunhalar-me às seis da manhã. Um, quase rioo, de desconjuntados trastes de castanho, tapetes traçados de pele de cabra, vigas no tecto. O que ge dez em dez minutos estremecia por ficar por cima do metro de Paris. Um forno, na India, onde só se podia dormir sem roupa, numa esteira. Celas de monja com dois braços de largura. Águas furtadas, a chuva nas goteiras, o arreganho dos gatos na estação do cio. Recantos com vistas para muros de cerca, para o adro da i reja, para um saguão. Paredes nuas, bolorentas, opressivas. Ru­mores surdos, insónias, sustos, pesadelos. 
Abrigos passageiros de tantas e tão variadas criaturas, que ali sonham, amam riem, choram, se desesperam, o ar que circula nos quartos alugados é igual em todas as partes do mundo. Quase vence o mofo, o ácido da cal, o viço do madeiramento. Cobre os odores caseiros, as essências mais finas, o nosso próprio hálito. Algo que trouxemos connosco na viagem: a semente teimosa da esperança?»