Quartos alugados

A gentileza do João Miguel Barros trouxe-me esta pequena nota escrita por Maria Ondina Braga publicada no n.º 2 da revista SEMA que com a Maria José Freitas publicou entre 1979 e 1982 e que se pode encontrar aqui.


«Sejam novos ou antigos, têm todos o mesmo cheiro, e angustiante. 
As cadeiras, reles, obra de feira, chiam quando nos sentamos, a ameaçar ruír. A gente instala-se lá muito direita, sem vontade de ficar. Se queremos ler um bocado, é afundados na cova da cama, de colchão gasto. As ·almofadas, de folhelho ou desperdícios de nylon, trilham-nos as fontes como papel encarquilhado. 
Mobília de quartos alugados é de verniz brilhante com metais amarelos, ou de aglo­merado de madeira e placas de fórmica. Há uma roda branca no tampo do psiché, de alguma cafeteira a ferver ou - quem sabe? - de malga de bochecho para boca inflamada. E falta falar na carpete rompida, o cotão das gavetas, uma baratinha, lesta, ao entardecer. 
Naquele quarto longe, de cinquenta patacas, nem móveis havia, salvo a preguiceira de palha e a cama de bambú. Escrever era nos joelhos sobre um dicionário. Um corredor estreito com seis desses cómodos e na cave a lavandaria: o zum-zum das máquinas como se o mar passasse por baixo. Mas, no pátio de terra calcada, todos os anos uma acácia se abria em flor. Lá para os fins de Março uma aragem tépida frisava o mosquiteiro de renda tra­zendo para dentro pólen e perfume.
Dessa meia dúzia de cubículos, agora habitados só por professoras, corriam no colégio histórias medonhas: que ali, dantes, dormiam as internas mal-comportadas, as viciosas, as namoradeiras - no hall da entrada a vigilante alerta. Que algumas saltavam de noite para o pátio, uma até fugiu, uma até tentou suicidar-se. Quem mais coisas contava - vejam lá! - era a criada muda de nascença e de gestos exuberantes. Quando a directora mandou pôr grades nas janelas, as moças acordaram a cidade aos gritos. Tudo isso tinha sido há muito tempo. Lembrava-se a muda com setenta anos e outra que levava os dias a chupar num cachimbo. A marca dos ferros lá estava, nas vergas de pedra. 
Quartos alugados guardo-os na memória dos mais diversos sítios. Aquele onde a neve se amontoava na vidraça, o edredão a coar penas de pato pelas costuras, o despertador a apunhalar-me às seis da manhã. Um, quase rioo, de desconjuntados trastes de castanho, tapetes traçados de pele de cabra, vigas no tecto. O que ge dez em dez minutos estremecia por ficar por cima do metro de Paris. Um forno, na India, onde só se podia dormir sem roupa, numa esteira. Celas de monja com dois braços de largura. Águas furtadas, a chuva nas goteiras, o arreganho dos gatos na estação do cio. Recantos com vistas para muros de cerca, para o adro da i reja, para um saguão. Paredes nuas, bolorentas, opressivas. Ru­mores surdos, insónias, sustos, pesadelos. 
Abrigos passageiros de tantas e tão variadas criaturas, que ali sonham, amam riem, choram, se desesperam, o ar que circula nos quartos alugados é igual em todas as partes do mundo. Quase vence o mofo, o ácido da cal, o viço do madeiramento. Cobre os odores caseiros, as essências mais finas, o nosso próprio hálito. Algo que trouxemos connosco na viagem: a semente teimosa da esperança?»