Encontrei hoje, nas pesquisas que tenho vindo a fazer para uma publicação que espero conseguir efectivar, esta edição original, de 1968, pela Panorama. Nunca se conhece tudo. Há sempre uma surpresa quando menos se espera.
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Um amor aqui ao lado
Voltei, por um momento ao livro A China Fica ao Lado, por me lembrar do papagaio de Mister Wang que se alimentava quase só de flores. Era na Pousada da Amizade, em Macau. Mister Wang, o homem «de olhos antigos e cansados», o empregado da biblioteca chinesa, que se descobriu dormia secretamente com Miss Jane, magrinha, feia e professora da escola infantil, um «amor jovem, exacto, e inesperado», precisamente ali, a ranger, provocante, à distância de um tabique, num esconso quartinho do mesmo corredor.
O pesadelo das mãos furadas
Maria Ondina Braga esteve em Macau depois de em Angola e Goa. O livro A China Fica ao Lado fala da sua estadia na cidade do nome de Deus, e é como se um livro de memórias soltas. Há, que eu tenha reparado, e julgo que o li agora cuidadosamente, uma única excepção com uma reminiscência africana. Vem no conto sobre A Doida, cujos pés «longos, chatos, vítreos, boiavam à flor da água como peixes mortos». A propósito das noites brancas de vigília receosa, as que traziam «sonhos angustiosos», lembra Maria Ondina que «a preta Águeda rezava uma oração ao "pesadelo de mão furadas e unhas encarnadas". Não fossem as mãos do pesadelo furadas, as mãos com que ele nos tapava a boca, e morreríamos abafados». É preciso ter sentido alguma vez na vida esse terror nocturno, genuíno e sufocante, aquele que parece esmagar-nos o coração, como se com um martelo, e nos seca a respiração, como se estoirassem os pulmões, para ter sido capaz de vêr aqui como tudo se passou. Sonâmbulo, acordado em criança a meio da noite, alagado no suor dos pavores sonhados, sei como é. Agora vi como se diz.
O drama solar
Viajar de comboio permitiu-me ler o A China Fica ao Lado, o livro que Maria Ondina Braga escreveu quando da sua passagem por Macau, como professora e que se editou em 1968, com uma nova edição, aumentada, em Fevereiro de 1974. O 25 de Abril atiraria o livro para o olvido e quase com a escritora para o rol dos ostracizados. Eu falarei aqui deste livro de contos, comovente de sensibilidade e de delicadeza de sentimentos. Mas fixei-me hoje na pequena frase que Natércia Freire disse sobre a autora e que orna a badana esquerda da capa: «creio que nenhuma escritora disse, até hoje, com maior simplicidade e clareza, e em tão poucas palavras, o drama solar de determinadas mulheres - para as quais nem o próprio amor representa um tempo de companhia». É isto que se desfolha neste livro, página a página cruelmente, como no colégio «diante das batatas cozidas, dos pires de açucar, das tigelas fumegantes, sentava-se ao lado de Miss Carol, ao nosso lado (à mesa de toalha de oleado e loiça grosseira) a Tristeza, ou a Pobreza, ou a Solidão, não sei bem. Sei só que era feminina e incomodava». Miss Carol, mestiça de chinesa e de inglês, a professora de Literatura britânica, aquela que «dir-se-ia nunca ter sido nova».
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