Conferência proferida no âmbito do Forum do Livro de Macau em Lisboa, no dia 3 de Novembro de 2016, na Biblioteca Nacional de Portugal, organizado pelo Associação dos Amigos do Livro em Macau. Guardo-a hoje aqui.
Porquê eu? Por não existir acaso, mas encontro. Maria Ondina Braga esteve em Malanje em 1961, cidade onde eu, perplexo pelo alvorecer da guerra, com a minha infância me desencontrava e também com aquela terra onde me tinham dado o ser; estaria depois ela em Macau até 1965, território aonde eu, para funesto destino, eu arribaria em Novembro de 1987; nasceu, afinal, em 1922, no mesmo ano que minha Mãe; publicou o primeiro livro de versos em 1949, ano em que eu nasci.
O mundo são estas contingências que, cruzadas, geram a improvável mecânica da vida. E são símbolos e por eles se inicia o conhecimento, de que a razão é incapaz, nós e laços, como escreveria António Alçada Baptista.
Ao intitular este meu escrito “Ela veio para ver o Céu”, movi a primeira pedra num jogo de palavras face ao título da sua primeira obra em prosa, a qual conheceu publicação em 1965, o livro
Eu Vim para Ver a Terra, editado pela Agência Geral do Ultramar
[1]. Só que, assim espero ser entendido, não se trata de mero divertimento verbal. Há um sentido escondido a aclarar.
Por outro lado, ao integrar esta minha intervenção em uma das sessões do
Forum do Livro de Macau em Lisboa coloquei-me como questão não que Macau encontrou Maria Ondina Braga, antes, em registo de íntima proximidade, que Maria Ondina Braga encontrou Macau. Macau, que não só se cruza a cada passo nos seus livros, diria na quase totalidade do que escreveu, mesmo no domínio ficcional – em que a “persona” se oculta sob a personagem e
A Personagem é título de um dos seus livros, aliás nada conseguido a meu ver e quase irreconhecível como seu, publicado em 1978
[2] – como passou a ser território cultural e sentimental da sua nostálgica interioridade, marcando, de forma indelével, o seu sentir e até o seu próprio modo de ser. Mesmo a fisionomia, a indumentária, orientalizaram-se. Mais do que o estilo de vida, o modo de pensar a sua existência. O essencial.
E, no entanto, lamento, falarei aqui menos de Macau do que deveria. A riqueza do que há na sua escrita sobre este pequeno território é tal, entre a narrativa, o conto, a crónica poética – como lhe chamou – e o romance – por todos o enigmático
Noctuno em Macau [3] – que seria impossível, sem trair, abalançar-me a tal propósito.
Tudo lhe começou, este fascínio pelo Oriente, com uma aula, em que, aluna ainda, em Braga, um convidado foi à escola falar e passar imagens sobre a então enigmática e longínqua China, «o País do Dragão de Nove Cabeças», a sua cultura, histórias que pareciam lendas, a literatura, sobretudo a poesia. «Imagine-se, agora, o entusiasmo lá em casa, quanto à palestra da semana. Admirado o tio Luiz. De preto o orador? Talvez um jesuíta. Muito cultos os da Companhia de Jesus. E viajados. Os primeiros padres portugueses a entrar na China depois dos Descobrimentos. Do seu anonimato, regras, o voto possivelmente»
[4] .
Maria Ondina Soares Fernandes Braga nasceu em Braga – curioso, sintomático até, a terra e o nome a miscigenarem-se – e ali está sepultada, no Cemitério dos Arcos, regressada às origens. O seu corpo viveu oitenta e um anos. Pelo meio, uma vida em tão diversas paragens que a sua alma reduziria a um só local na terra, um lugar de interioridade, as paredes da sua clausura.
Se somarmos o tempo cronológico da sua vida ao tempo em que viajou, conclui-se, assim a lógica fosse tudo, ter sido a sua errância terrena, afinal, breve, maior o tempo de sedentarização. Caminhando no sentido retrógrado do relógio, como veremos que na realidade lhe sucedeu, e não relevando as viagens que fez por lazer ou em homenagem, mas apenas o inventário dos lugares de vera permanência, é imensamente maior a geografia: meses em Pequim, quatro anos em Macau, escassíssimo tempo no Estado Português da Índia, dois anos em Angola e um tempo indeterminado, breve, porém, em Inglaterra e França. E mais viagens, viagens que nem se adivinham, que surpreendem como se tivessem sido secretas ou irreais, mas curtas como são todas essas viagens em que se vai para ver. «O barco partira do Japão. Eu entrara em Hong-Kong. Tínhamos visitado Saigão, Singapura, Ceilão, Bombaim (…) E eis que, ao entrarmos no golfo de Adem, se nos deparou África», confiou à crónica Jibuti
[5] , surpreendendo quem não descobrira rasto dessas andanças
[6] .
Brevidade e incerteza. Perseguida pelo infortúnio, ao chegar a Luanda e logo assolada pelo início da guerra, a seguir daí para Goa e a dar-se a invasão do território: «Mas que sina, meu Deus! Eu onde quer que chegue, aí o conflito e a falência», anotaria como um lamento num dos seus escritos.
Eis, pois, a «alma peregrina», em «escrita itinerante», as viagens que efectuou ela as continuou, porém, para além do tempo em que ocorreram, perpetuando-as nos seus contos, mesclando-as, como se em contínua revisitação, em idas e vindas, rememoração e sempre em saudade, saudade de si, perguntando-se como se em espanto: «Donde vim eu que não guardo saudades de nenhum lugar?
[7]». E já na China, seriamente doente, sofrendo a sua última viagem, interroga-se, num livro que intitulou, em grito contido,
Angústia em Pequim: «Hoje, todo o santo dia esta perseguição: porque é que vim para tão longe, que destino de andejo é o meu, e quando me acabará este fadário?»
[8] . Ela em quem Maria Adelaide Valente viu «a paixão por sua terra. Dela guarda os ruídos, os perfumes, os silêncios, as sombras, os medos, as cores e os sonhos também»
[9] .
Falando em Hamburgo, mais tarde, sobre este seu livro dirá ser um «livro de deslumbramento e de desespero, o mesmo é dizer: de amor e de raiva». E sugere mesmo que em vez do título com que foi publicado poder-se-ia ter chamado Exílio em Pequim.
Em nenhum lado, em nenhum momento encontra paz. A relativização ocorre na sua escrita pela miscigenação dos espaços, pela indeterminação do tempo. Tudo se move entre o provável e a fatalidade, o fugaz e o eterno. E, sobretudo, como bem notou Ana Paula Laborinho, num universo em que «os lugares constituem, em última instância, perscrutações interiores»
[10] .
Maria Ondina Braga chegou a Macau em Dezembro de 1961, via Carachi e Hong-Kong, oriunda de Goa, de onde saiu no dia 17 desse mês, por causa da ocupação do território pelas tropas da União Indiana. Fora das últimas mulheres europeias a sair ante o que chamou de «escandalosa missão de usurpação».
Pouco tempo ali estivera, mas, porém, já se referia àquela «dor da invasão indiana que me obrigara a abandonar a terra dos meus antigos quase só com a roupa do corpo», pequena sacola, deixando para trás, na missão de Caranzalém, o pouco que tinha de seu, excepto o livro com cartas de Rainier Maria Rilke.
Estranha, mas sintomática, essa frase no livro
Estátua de Sal [11] : «(…) a terra dos meus antigos», escreveu, como se a breve permanência do estar tivesse escassa valia face à intensidade duradoura do ser.
Intensidade que se sente em cada linha da narrativa sobre A minha última noite em Goa, relato em que se misturam «a realidade do aeroporto», a rememoração das viagens feitas a Dona Paula, Mormugão, Caranzalém, Pangim, Velha Goa, por entre a «paisagem de sol e de seiva», e o «cismar num conto a que se poderia dar o título de “O homem e o Deus passeando na noite”». Goa de onde partiu com mágoa. Partiu «e Goa ficou lá», escreveria a resumir nesta simples frase todo um caudal de sentimentos.
Intensidade que retoma no seu relato Goa: a hora do adeus, saído em 1994 com o livro A Passagem do Cabo: «na missão cortavam a corrente eléctrica entre as nove e as dez da noite. Terminada a aula nocturna de Português, regressava eu a casa às escuras: mal daria pelo pátio não fosse a Lua (enluaradas as noites de Goa), e Lua e as raízes das árvores-de-gralha a roçarem-me pela nuca».
Que Ondina Braga é esta que assim aporta à Cidade do Santo Nome de Deus, espavorida mas deliberada, a Macau, que podendo ter regressado à Mãe-Pátria optou por interiorizar-se mais ainda a Oriente?
Chega uma professora em busca de trabalho. É-se sempre mais do que a profissão que se desempenha. Mas no seu caso ser professor é como algo para que parece ter-se preparado toda uma vida e se tornou segunda natureza, a juntar-se à de escritora, fatalidade que a condenou à modéstia, à clausura dos seu quartinho, ao convívio contido com os demais, à contradição de sentimentos, como o diz uma vez mais em
Estátua de Sal [12] esse livro em que quase está tudo, quando se digladia entre «uma espécie de euforia no acto de ensinar», numa turma em Macau entre quarenta e oito meninas que «sendo-me humanamente indiferentes, conseguem povoar-me a alma deserta porque me escutam e me acreditam»
[13] e o sentimento antagónico: «Eu não amo as minhas alunas, nem acho que seja preciso amá-las. Gostaria, sempre que entro na aula, de começar a contar uma história absurda de infelicidade.»
[14]
Tudo começara primeiro, como aluna, na confinada Braga de então, onde a escolaridade rígida somava às exigências da religiosidade disseminada. «Que medo dos humanos talvez não seja essa a palavra certa. Antes constrangimento», escreveria no livro Vidas Vencidas, publicado em 1998, síntese e reiteração de tanto que já escrevera, como se a não tivessem lido, mas sobretudo regresso à infância, ao tempo primordial, a cinco anos, porém, do fim.
Rompera já com Braga, rumando às «ilhas encantadas», a Inglaterra, assim lhes chamou no seu pequeno livro
A filha do Juramento: «Nascida e criada em Braga, a primeira vez que deixei a terra natal foi, digamos, em busca das ilhas encantadas. Quem já não terá acalentado sonhos assim? Ilhas. O mar de permeio. O atrevimento e o medo.»
[15] E acrescenta «Que eu fui pela língua. Fui e fiquei», remata.
[16]
Viveu em Glouscester, tempo que não consegui determinar, sustentando-se no regime
au pair [17] , na casa da família Mills, deslocando-se regularmente a Londres para frequentar a escola de inglês para estrangeiros, esse «curso nocturno [que] era espectáculo curioso como um aviário», como o deixou descrito no seu livro
Estátua de Sal [18]. Pequena localidade no interior «tão sossegada a estrada onde eu vivia, em forma de meia-lua, e tão mal iluminada de noite, que, se o luar vinha, muito branco e frio, toda a rua parecia, súbito, envergonhada, como mulher surpreendida nua».
[19] «Todo um aconchego provinciano que falava de maçãs no madureiro e de lume de cinzas.»
[20]
Mudou-se para França, vivendo enfim, como explicou no conto
A Casa em
A filha do Juramento num enfim espaçoso quarto na mansão do casal Morin situada nos «arredores de Paris que diz pertencera a Lavoisier», em Bièvre, casa com grutas «um subterrâneo que servira de esconderijo aos perseguidos pela Revolução e que ia ter ao Palácio de Versailles.»
[21] Estudava na Alliance Française no Boulevard Raspail. Preparava-se.
Regressada a Portugal parte como professora para Luanda, onde ensina no Colégio de São José de Cluny.
De todos os testemunhos que recebi sobre esse seu tempo angolano, um comoveu-me pelo arrebatamento. Fala uma então jovem adolescente, extasiada ante a sua professora: «Maria Ondina. Magra, esguia, de grossa trança preta enrolada na nuca, entrou na sala de aulas quase flutuando na sua leveza de um ser subtil»
[22] .
Deixara crescer o cabelo, arrumava-o com uma trança, a trança depois cortada, «tão preta que parecia azul», quanto à qual, num dos seus contos, a velha Águeda, avisava: «Menina, não ande de cabelos desatados. O demónio arma sarilhos com eles, rodopios, tentações..»
[23] .
É enquanto professora que viaja a Malanje, em gozo de férias, cidade onde eu, de todo ignorante na inocência solitária dos doze anos, nem sonhava então a sua existência. Saíra de Luanda, na automotora das oito e meia, como, hipnotizada pelo arrebatamento da paisagem, relata em
Eu Vim para Ver a Terra «manhã de sol ardente»
[24] , mês de Março de 1961, rumo a Vila Salazar. «Comigo dezoito internas, minhas alunas, rumo às suas casas no mesmo gozo de férias».
Pára na Canhoca, para almoçar, onde tantas vezes também parei, a mesma ferrovia, o mesmo longo tempo de viagem. Uma aluna sua, filha do administrador, vem convidá-la para uma refeição em sua casa.
Chega, entretanto, à cidade que hoje se chama N’Dalatando. Ia passar uma semana ali, em férias «com gente bem portuguesa de África cujo chefe de família, espírito requintado, culto, viera há mais de quarenta anos como médico dos presidiários nos fortes de Luanda».
Retoma viagem para o seu destino agora «uma primeira classe algo elegante no comboio ronceiro qual cobra mecânica serpenteando o mato.»
[25] levando, consigo – insólita leitura –
A Brasileira de Prazins de Camilo Castelo Branco
[26] e chega a Malanje noite fechada. «Na pequena estação apinhada de negros branquejavam os hábitos das madres missionárias.»
[27]. Camilo, que fora leitura de juventude, a biblioteca formada por seu pai e pelo seu tio, homem culto, entalhador, que fundaria a casa de móveis Soares Barbosa, em 1899. «Dia após dia, portanto, lidos e relidos, os livros já ela quase os sabia de cor.
A Queda de um Anjo,
Doze Casamentos Felizes. Tanto ler! Até prejudicava a vista!»
[28] .
Chega, então, a guerra. Di-lo na crónica
Luanda 61: «Ruas inteiras de casas com escritos. Cresciam ervas nos pátios das vivendas ricas. – vivendas que tinham tido muitos criados negros e que de repente os haviam despedido todos. Quem queria agora negro em casa? Quem? Um inimigo! Senhora branca, porém, já não sabia viver sem criados em Angola. Mal habituada»
[29] .
Sentindo ser-lhe impossível continuar, opta por Goa. Rumo a Oriente.
Professora no então Estado Português da Índia, fixou-se na missão católica em Caranzalém, «cidadezinha rústica com uma grande praia e um mar muito azul»
[30]ensinando meninas indianas cujos pais haviam emigrado para Goa e a quem a língua portuguesa lhes tinha de ser ensinada a partir do inglês, que era a que dominavam.
Poucos meses ali permaneceria. A guerra viria, uma vez mais, ao seu encontro. Em Dezembro estava de partida.
Professora, enfim, em Macau, ei-la, «Miss B.», no Santa Rosa de Lima, e todo um desfile ténue de figuras humanas nos surgem, a directora, Miss Carol, «professora de língua inglesa na classe de seniores», «mestiça de chinês e inglês, embora mal passasse dos trinta anos, dir-se-ia nunca ter sido nova»
[31] Miss Lu, uma colega alemã, a directora dos estudos, a porteira.
Foi o tempo de maior permanência foi o que mais marcas deixou, e profundas, na sua alma. Foi aí que escreveu
Estátua de Sal e
A China Fica ao Lado [32] .
«Era, de Portugal Ultramarino, o sítio onde se ganhava pior. Um meio pequeno, terra de muita bisbilhotice, o que chineses chamam Cheong-Hei, numa tradução à letra bafo comprido», confessaria em entrevista a Ana Paula Costa para o
JL em 1991
[33] , um ano após ter regressado a Macau, a convite da Fundação Oriente.
Professora também voltaria a ser, em 1982, na Secção de Português no Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim, por pouco tempo, a saúde seriamente comprometida já. Fá-lo porque nos limites da sua capacidade de subsistência, esgotada com obras dos outros que traduzia em condições miseráveis, sem tempo nem forças para a sua escrita.
Seja ridículo – porque a verdade é frequentemente assim, patética, insignificantemente menor, feita de coisas comezinhas – mas em Janeiro desse ano em que partiria para Pequim, concedeu a Maria António Fiadeiro uma entrevista, que o JL publicou, na qual relataria a magreza de recursos com a vida a fustigava: «Agarrei-me às traduções por achar que era o único modo de vida que me dava para escrever. Um escritor precisa de ter liberdade de horário. Tem dado porque levo uma vida muito especial. Vivo de escrever porque pago uma renda de casa insignificante e sou vegetariana». Vive com pouco, perguntou-lhe a jornalista: «Se lhe dissesse não acreditaria. O meu modo de viver é desprendido. Sou desapegada. Não aprecio carne, não gosto de bolos de pastelaria. Tenho poucos gastos. Quando passeio vou a pé até à estrada. As roupas duram-me muito. Desviei-me do consumo. Entre um bife com batatas e um prato de bacalhau prefiro uma chávena de chá ou um iogurte. Como escrevo sempre pela noite fora poupo uma refeição. Não preciso de muita coisa para viver, mas já quase não se pode viver como eu vivo».
Com estas palavras terminara precisamente um dos livros autobiográficos, iniciado em Macau em 1961 e terminado em 1963: «ninguém saberá que vivo só daquilo de que nenhuma pessoa pode viver»
[34] .
O ensino, que se suporia uma vocação, era, na sua essência, uma forma de resistir.
O ensino, as viagens, o cosmopolitismo da sua juventude, a herança cultural de seu tio, o próprio ambiente em casa, talvez tudo isso lhe abrisse as portas da socialização não fora o seu espírito solitário a isolar mais do que as circunstâncias a afastariam da convivência: Maria Ondina é, por um lado, «a menina triste», por outro, o ser humano que quase que só tinha olhos para as vítimas do infortúnio em seu redor, condenados ao Inferno na terra, aqueles para quem solidão não era luxo, mas fruto da penúria e da sobrecarga de trabalho.
Eram já os «velhos envergonhados de pobreza»
[35] na sua Braga Natal e sempre os simples, os leprosos na gafaria em Macau, os do porto interior, velhas esvaídas e meninos de tudo despidos, os esfomeados de afecto, até o pobre doutor Yu, médico «chinês e exilado. Aceitava tudo, até o que a outros poderia parecer inaceitável»
[36] , sempre os olhos para os que estão no rodapé da vida, ela que, jogando-se inteira ao mundo, veio para ver o Céu.
Desilusão provinda da infância, como no-lo diz em
Estátua de Sal [37] : «A infância! Então, a gente julgava que viver era igual às histórias dos livros, ora tristes, ora alegres, mas sempre excitantes, deslumbrantes. Não se sabia do engano das pessoas e dos tempos, nem se imaginava os fantasmas da dúvida, do cinismo, do tédio».
Tristeza que tão magnificamente descreve, já na para tantos feérica Macau, nesse mesmo livro
[38] : o sentir-se «agora frequentemente cínica, egoisticamente triste», mas já «um sentimento calmo», uma tristeza que «enchia a sala, o largo lá fora, o próprio céu; pousava-se em todas as coisas; era tudo», onde o «próprio Deus, longe ou perto, tinha de ser um Deus triste».
Como ser-se feliz quando pesa como excesso o pouco que se tem? Quando se é mulher e só, em terras onde todas parecem ter companhia e não a ter assemelhar-se a doença escondida ou vício oculto: «(…) ao nosso lado (à mesa de toalha de oleado e loiça grosseira), a Tristeza, ou a Pobreza, ou a Solidão, não sei bem. Sei só que era feminina e incomodava»
[39] .
Mau grado isto, não se estranhe que, sob este pesado manto de agonia, haja, como latente jorro vulcânico, carnalidade e sensualismo, mas expresso com tal delicadeza e finura, como tule fosse de véu ao pudor, ou renda de bilros a que tanto se dedicou. Num verso que encontrei, solto, no seu espólio, em Braga, leio a contraída contenção e a expectativa: «criada para beijar minha boca está crispada/dói-me o saber-me à espera de nada».
Desinteressante saber se houve nesta vida algum relacionamento pessoal que desse corpo físico ao anseio de amor? Talvez, isso pressente-se na sua escrita, tão biográfica ela é, mesmo quando na aparência ficcional e há hoje mistérios desvendados que foram mantidos em discrição pela generosidade decente dos seus próximos neste mundo de concupiscências devoradas.
Interessante, antes, não o contar da sua história amorosa, se histórias houve, sim o modo de a ter contado, porque há, no pulsar mais íntimo do seu ser o conflito de Eros e Thanatos, e como ela o sublima, em excelência, pela poética na sua escrita,
Amor e Morte, assim se intitularia o livro de contos que daria à estampa em 1970
[40] com a estranha dedicatória: «Para Thomaz de Figueiredo, amigo e escritor vivo, este livro de morte».
Logo em 1949, com a sua estreia em poesia com o livrinho
O meu sentir [41] , onde ao «prazer agridoce…de ser só»
[42] já soma o «beijo que por ser dado sobre a boca/me abafou um suspiro…e me pôs louca»
[43], mas é um pouco por toda a sua obra que paira esse perfume de exaltação contida dos sentidos, evidência flagrante de amor. Ondina «o génio do amor que vive nas águas. Sereia, era uma sereia», lhe explicara seu tio sobre a génese do nome que era o seu
[44] , assim lho um dia, a Enciclopédia Larousse na mão, fonte de todo o saber naquela casa da sua juventude.
Mesmo no mais triste do que escreveu irrompe
[45] «um homem», que lhe embargou o passo e de que guarda «só esta cena linda: a minha tristeza em abraçá-lo, longa, carinhosamente, do jeito como os homens gostam de ser abraçados».
Até na própria descrição da luminescência do entardecer, ei-la, quando surpreende que «a luz recortava, indiscreta, as formas dos corpos, desnudava tudo no seu afã de sombra»
[46] .
Até nos livros, nas palavras encontra «a volúpia dos vocábulos, a tontura da sua música, o seu beijo cálido. Sofria-se. Sentia-se que era uma paixão, um pecado, quase. Os sons, as sílabas, os silêncios de pontuação, a carícia do papel nos dedos, o cheiro de prelo, de pó, do tempo»
[47] .
A própria ficção está eivada de momentos de êxtase físico, relatados com impudor natural, como quando Gabriela «voltou a sentir-lhe as mãos sábias a entontecer-lhe o corpo, a visitar-lhe os seios, o ventre, as ancas»
[48] , os «beijos do comissário que sabiam a sal».
Mas não apenas diáfana a fantasia da nudez nem crua a luz do corpo. Há uma verdade claramente dita sobre a atração e a repulsa da entrega, a frustração da abstinência. «Se um homem, lá fora, me tomava o braço, atrevido, a convidar-me para uma bebida, a lembrança do seu hálito quente, das suas mãos no meu corpo, causava-me lágrimas, lágrimas que se me afiguravam de repulsa mas que eram talvez uma espécie de sensualidade malograda», escreveu
[49] , situando-se em Inglaterra.
Há, entre o pudor e o atrevimento, a virtude e a tentação, o demónio do pecar, adormecer despida, esgotada ao chegar a Hong Kong, vinda da longa viagem de fuga, depois de um duche rápido, qual autómato, era «a hora da água» repuxado o min-toi e nem dar pelo criado, que voltara, anunciando o jantar e «sorria, os seus olhos estreitos e compridos tinham algo de mefistofélico. O criado era o diabo. Espetados na testa, os cabelos pretos e curtos sugeriam chifres»
[50] .
E há o onírico, como quando em Hong-Kong onde – teria sido? - «amei um homem que tinha olhos de oiro», «os seus olhos eram cor de água ao sol», homem que «não pertencia ao mundo dos mais (…) Por vezes chego a crer que ele não existiu, que a minha fantasia o criou, que foi um sonho que sonhei»
[51] .
E há, sobretudo, «aquela noite»
[52] , em Macau precisamente, longamente descrita, hesitantemente contada, noite de encontro com «o estrangeiro», o americano, pintor dizia: «Será que aquela noite é difícil de dizer? Guardarei eu saudades do estrangeiro? Que me ficou daí que não possa ser contado?». Aquela noite entre «as verdades e mentiras que contava», quando: «Foi quando me lembrei que ele falara em beijos. Se beijava, era homem. E respirei fundo, pois estava a ficar meio aterrada»
[53] . E assustada, como se tivesse visto alma do outro mundo regressou ao colégio e contou que «fora ver a cidade depois do tufão, que encontrara um fantasma».
«Aquela noite» que terá – quem saberá nesta escrita tão esconsa – a ver com «aquela carta»
[54] : «Esperava por ela há quanto tempo? Talvez desde que existo. Ele diz que me ama, que me quer, que só pensa em mim. Ele não é aquele que eu conheço e que nunca quis. É outro. Conheci-o há dias, o mesmo que dizer que o não conheço».
E, no entanto, viveu só. Nunca formou família. Recusou a ideia de ter filhos. A uma entrevista concedida a Isabel Mendes Ferreira, em Março de 1990, explicou-se. À pergunta «gostaria de ter sido mãe», respondeu: «não de todo e sabe porquê? Porque achei sempre muito difícil viver, acho que não tenho o direito de dar um s«er ao mundo, é terrivelmente difícil, muito sofrido, então não me sinto com esse direito.
Talvez o seu ser indómito, renitente a entregar-se, dê explicação, se na vida tudo tem de ser compreendido: «Oh! Miguel, possuir! Só a terra nos há-de possuir, mas depois de mortos. Possuir é destruir. Ao cuidar que possuem as mulheres, os homens estão a iludir a sua própria impotência», colocou ela na boca da sua personagem no conto O Retrato publicado no livro Os rostos de Jano
[55] .
Talvez a revolta: «Na cama, a confusão e o fastio. Não propriamente remorsos (como haver remorsos sem desejo?) antes revolta contra os privilégios do macho e também a nostalgia do amor», assim D. Jandira, personagem do conto O recolhimento
[56] , oriunda – quase o afirmaria – das lembranças de sua tia, que anos vivera no Brasil.
Talvez por não saber que amava, «com um amor diferente, melhor. Amara a pureza do seu amor ignorado, as palavras que nunca tinham trocado, os abraços suspensos, as bocas brancas de sede»
[57] , como a personagem de um dos seus contos, que negociava em madeiras – como os da sua família – que andara pelo Brasil – como alguns dos seus.
Talvez porque, como citou de outra tão magnífica quanto esquecida escritora, Irene Lisboa
[58] , lembrando esta os dois ou três homens que a beijaram, a desejaram passageiramente, e nada foram, afinal, na sua vida, mirando-se ao espelho – e que obsessão há quanto à figura do espelho na escrita de Maria Ondina, espelhos irónicos, piedosos, cruéis, reflectindo risos e prantos, tempestades de paixões
[59] – ante o belo corpo «este peito formoso, realmente não merecia só a concupiscência, merecia amor…».
Talvez porque, afinal, o afecto, discreto, protegido pelos íntimos, que dedicou, acabasse por ser a relação desigual de Ilda, uma das suas criaturas, «amante perfeita, Ilda, para um homem como ele, todo voltado para si mesmo, para a sua arte», ele, Carlos que «sabia que um artista nascera para ser amado, não para amar» e a quem, em desespero de contido grito, confessa: «Nem tu precisas do meu amor. Tens os teus êxitos. Perdoa. Sei lá porque te estou a dizer isto. Talvez por me sentir tão assustada e só. Como se fosse morrer»
[60] .
Vida de alfa a ómega no ciclo vital, povoado de sentimentos, a que não falta o riso, reiteradamente o riso e também uma irradiante alegria solar, há nele a naturalidade da morte ao lado da fulgurância da vida, e tudo num rito de passagem, como se expressou, uma vez mais em Estátua de Sal, um dos livros paradigmáticos
[61] : «O mundo dos mortos, paredes meias com o dos vivos, a passagem sempre aberta entre os dois, os homens a atravessarem deste para aquele, e um segredo tamanho a separá-los» e rememorando os seus, já partidos, acrescenta: «E vi depois os mais da casa irem passando a pouco e pouco. Era como se toda uma família abandonasse o país natal rumo à terra da aventura, hoje estes, amanhã aqueles, com saudades uns dos outros»
[62] .
Perseguindo a vida, Maria Ondina é perseguida pela morte, mesmo no errático dos sonhos: «Eu sonho muitas vezes com os mortos. Vejo-os belos, calados, tristes». E, no entanto, vive: «Hoje, é o Sul da China. Outro tempo, foi a Inglaterra. As coisas, no entanto, é que me têm aguentado viva»
[63] .
Escasso o pão, imensa a fome. «Não me inquieta o dia de amanhã/Sou pobre…mas ser pobre é ser alguém!/Eu amo a pobreza. Sou irmã/Dos que nada cobiçam e nada têm», escreveu em 1949
[64] neste verso imperfeito, prenúncio do modo despojado como conviveria com a pobreza dos haveres e a insignificância das suas necessidades materiais.
Com tão pouco subsistiria mesmo entre aqueles que tanto mais precisam quanto mais lhes sobra.
Precariedade, despojamento, sujeição, assim viveu Maria Ondina o mundo dos bens materiais, dos rendimentos, dos gastos. Na sua derradeira viagem, em Pequim, deprimida, moída de «tristeza, a bílis negra», perguntava-se: «E se em vez de viver no Hotel da Amizade, fosse habitar juntamente com o povo chinês? Um quarto sem carpete nem guarda-fatos, a caixinha da pomada milagrosa à cabeceira, uma esteira a servir de porta? Acabado o trabalho, chegar a casa devagar, a rodar, a rodar, beber um copo de água quente, sentar-me na soleira a olhar o sapo que mora na lua?»
[65] .
Pobre a sua remuneração de professora, foi a insuportabilidade dessa pobreza que a fez errar pelo mundo, como no final da vida, aceitar – já quase incapaz de servir, os nervos a desmoronarem-se – a função de docente de línguas estrangeiras em Pequim, na secção de português do Instituto de Línguas Estrangeiras, onde chegou em 1982, Ano do Cão. Disse-o com coragem numa entrevista a José Jorge Letria
[66] : «Trabalhei um ano na China por desespero, porque já não podia suportar mais as condições em que tinha que trabalhar aqui em Portugal».
Em 1968 correspondera-se com Agustina Bessa-Luís, solicitando ajuda, oferecendo-lhe esta a possibilidade de colaborar consigo: «instituía-a numa espécie de secretariado que não lhe tolhia nem desviava a sua actividade própria», acrescentando que iria interceder, sem compromisso de resultado, para que pudesse ver aceites, embora sem regularidade, crónicas remuneradas no Diário Popular.
Incerta a paga, viveu, martelando noites adentro, traduzindo dezenas de livros – mais de oitenta diria – para esperar tantas vezes anos a fio pela remuneração, para ficar dela privada, para receber magros escudos à página. A Lurdes Feio confiaria em 1984, numa entrevista publicada pelo
Diário de Lisboa [67] , que isso de ser tradutora lhe permitiria, enfim, dedicar-se por inteiro aos livros. «E no entanto o que quer mesmo é estar no seu canto a escrever», anotaria a entrevistadora. A Maria Antónia Fiadeiro, em entrevista que o
JL editara dois anos antes, dissera, em discurso directo: «O meu primeiro original ficou dois anos para ser lido pelo editor. Pela minha primeira tradução esperei catorze meses que me pagassem. Tudo tem sido sempre tão custoso. Tão aos poucos. Viver é tão difícil. Tudo o que tenho feito tem sido fundado na dor»
[68] .
Escritora, esgotou com as obras alheias o tempo que não dedicou à sua escrita, e tanta da que viu editada ficou à mercê de edições duplicadas, de direitos de autor por honrar.
Sobreviveria de um subsídio público modesto, que caducaria.
Como é possível ser tão injusta a terra para quem aqui chegou como vinda do Céu? Tudo nela converge para um só início simultâneo com o único fim, o do recomeço, do um às mil e uma coisas que são e as que estão por haver: espiritualidade, religião, Natureza, esta trindade é, afinal, uma só entidade na sua vida interior, numa mescla em que, ao lado do constituído, da religiosidade oficial europeia, católica no seu caso, surgiam as manifestações transcendentais chinesas. No seu quartinho de professora em Macau Cristo ladeava Buda. A poética de Tao.
E também o mágico, o subterrâneo dos que passam ao lado da normalidade ronceira da vida. «Este meu fraco pelos excêntricos, pelos loucos, pelos vagabundos vem-me de longe», escreveu numa crónica publicada em 1975
[69] . No que a sua tia, que em tempos se radicara no Brasil, trouxe sob tantas formas, do lado obscuro do oculto, desde o espiritismo, à primitiva forma de celebração do divino através do paganismo, Natureza em todas as suas formas, da fauna à flora, do volúvel vento ao estático mineral.
Sintomático que um dos últimos textos publicados que dela conheço, datado de 4 de Abril de 1999 e firmado em Lisboa, escrito com uma tocante simplicidade, ingénua e quase infantil, como se o
poverello de Assis a iluminasse, seja dedicado aos bichos
[70] , e tantos que povoam as suas crónicas e a sua ficção
[71] : principalmente as osgas – presença permanente, constante, diria mesmo, amiga da sua solidão, as «osguinhas» em Macau «pequenas, rosadas, de corpo transparente», assim lhes chamava carinhosamente – os sardões angolanos, as cobras indianas, as lagartixas que viviam no quintal em Braga, a quem o povo – que por considerar pecado as não mata – também chama «sardaniscas», pois – será lenda - «quando Cristo chorou no Horto de Getsémani, por saber que ia ser crucificado, uma lagartixa veio beijar-lhe os pés».
Tanto poderia dizer. Tão pouco tempo tenho para o encontrar. Há dez anos construi a simplicidade de um local em sua homenagem. Vive no espaço. Dei-lhe o seu nome. Hoje que os académicos se multiplicam em torno de si, a sua obra é quase inacessível aos leitores.
Estudos tão profundos como a tese de doutoramento de Filomena Pereira Iooss defendida em 2008 em Paris, em que se acntua a emergência do silêncio na sua obra; a indação sobre a interculturalidade na obra de Maria Ondina Braga de Michela Graziani; o estudo das argentinas Graciela Cariello Graciela Ortiz, sobre o encontro e o desencontro com o outro, submetido à Universidade de Évora em 2010; a tese de Luciana Bezerra, sustentada em 2011 no Rio de Janeiro sobre a sua escrita itinerante, dissecando-a livro a livro; a Análise Pedagógica-Didáctica dos Contos “A China Fica ao Lado” de Maria Ondina Braga, apresentada como tese de mestrado por Sílvia Oliveira nesse mesmo ano à Universidade Católica Portuguesa; o estudo de Maria Araújo da Silva, sobre a experiência da viagem na escrita de Ondina Braga, apresentada na Sorbonne em 2013; a dissertação de Dora Maria Nunes Gago sobre Macau, lugar mítico de (re)construção da identidade na obra de Maria Ondina Braga, presente à Universidade de Macau em 2015; e, finalmente, as páginas que lhe dedica José Carlos Seabra Pereira no seu livro recentíssimo O Delta Literário de Macau que não hesita em considerar qie «o nome de Maria Ondina Braga integra, de pleno direito, o cânone autoral da literatura portuguesa contemporânea».
Esqueci alguns? Não! Esqueci tantos. Todos os que como Catherine Dumas, Claire Williams, Maria Graciette Besse, Maria João Albuquerque Simões, Paula Morão, Cândido Oliveira Martins, Fátima Outeirinho, Maria Araújo Silva, Maria Adelina Vieira, José António Garcia de Chaves, Pedro Baptista, os que mantêm o Espaço Maria Ondina Braga no Museu Nogueira da Silva, em Braga, onde se encontra o seu espólio, todos os mantêm a chama acesa do interesse sobre a sua obra. Os que, enfim, acorrem, em colóquios internacionais em torno da sua obra.
Na pessoa do Rogério Beltrão Coelho, saúdo, agradecido, aqueles, naquele território, que a souberam considerar como pessoa de Macau. Aos que na República Popular da China souberam vê-la como a mais chinesa de todas as portuguesa, viva e gratidão!
E, por fim, pois adiantou-se a nós na partida para o ciclo do eterno ressurgimento, em melancólica memória, Ana Maria Amaro. Bem haja!
Maria Ondina Braga é uma extraordinária mulher e, por isso, nos surge como uma magnífica escritora. Impossível não ser de amor o carinho que exista ante a sua obra.
Imensa em extensão e em profundidade a alma, conteve-se o corpo em clausura, confinamento. Sempre a imagem da pequenez do seu quarto, da cama onde dormia, mesmo no recolhimento protector de sua casa, a Wonderland, e ali 'the narrow beautiful bed», assim lha descreveu, num bilhetinho deixado na caixa de correio, em 1973, Jacinto Prado Coelho, o mesmo que, na recensão ao seu livro
Amor e Morte [72] reconheceria, sobre o intimismo da sua escrita, que «há páginas em que vibra o protesto da carne jugulada, da natureza diminuída. O corpo, contemplado na sua nudez solitária, é uma presença e um desafio.»
«Quartos interiores, privados de janela, faziam pensar em miséria ou em pecado: mistérios de alcova»
[73] , confidenciaria, como se de outrem falasse, numa sua crónica ou quase poema, assim lhes chamou a estes registos de fictícia alteridade.
Viveu como se em outro mundo, fora de todo o tempo.
Como o notaram os académicos há na escrita de Maria Ondina Braga a vertente temporal como elemento essencial à sua caracterização, quer pelos registos diversos que se cruzam, em persistente rememoração, quer pela imperfeição das datas, poucas a serem fruto do descuido, algumas talvez do desgaste e do cansaço, ela que escreveu até ao limite de já não lhe ser mais possível.
Mas o que há, enfim, é o mistério, como se tantos já não existissem na sua vida e obra.
Maria Ondina nasceu a 13, uma sexta-feira, de Janeiro de 1922. Sua irmã, Lídia, nascera a 22 de Novembro de 1920. Seu irmão mais novo, Virgílio, nasceria a 2 de Setembro de 1923.
E, no entanto, todas as suas biografias oficiais, dão como assente o seu nascimento não em 1922, sim em 1932, dez anos depois, dez anos, pois, mais nova! E ela própria nunca o desmentiu, antes, com a silêncio cúmplice dos mais próximos, manteve esse mito cronológico, de relativização do tempo, deixando em algumas das suas obras uma subtil pista quanto ao carácter fictício desse facto. A sua aparência diáfana ajudava a dar verosimilhança à circunstância.
Hoje o assunto está esclarecido. Devo a Luís Manuel Braga, filho de José Virgílio Braga, irmão de Maria Ondina a confirmação, a 10 de Fevereiro de 2008, deste facto, o que tornei público no blog que lhe dedico, a 13 de Agosto de 2012. A 7 de Junho desse ano, ao encerrar a escrita da sua tese de doutoramento, em Paris, sobre a escrita de Maria Ondina, Filomena Paula Pereira de Iooss, após ter consultado a certidão de nascimento da autora, daria como assente a data verdadeira. Agostinho Domingues. em artigo publicado no jornal Correio do Minho a 7 de Março de 201,4 menciona que «a barcelense Maria de Araújo Silva, vencedora do prémio Ondina Braga, há cerca de meia dúzia de anos, em excelente ensaio sobra vida e obra da escritora, assinala 1922 como data de nascimento».
Curioso é, porém, que, mau grado estas rectificações, a data de 1932 tenha ficado, não só como menção oficial um pouco por todo o lado, mas até na memória dos mais próximos que não concebem outra nem acreditam ser possível. A ficção triunfou sobre a verdade.
Nascem daqui perguntas múltiplas.
Primeiro o como sucedeu isto? Em artigo publicado na Revista de Macau em 2010, Filomena Iooss explica que tudo nasceu, segundo familiares, quando em 1979 a Enciclopédia Verbo se enganou na sua data de nascimento e no verbete respectivo retirou-lhe dez anos de vida. O facto foi-me confirmado também por um seu sobrinho, sem este pormenor de ter sido este livro a partir do qual surgira o equívoco.
Mas, explicada a génese do erro, fica o erro esclarecido? Não. É que em aberto continua saber-se porque se aproveitaria Maria Ondina de tal lapso. Vaidade feminina? É pobre explicação. Ânsia de viver, roubando ao tempo o tempo já ido?
Ou será que tudo terá que ter uma explicação e não haverá espaço para a perplexidade, o espanto, o insólito sem motivo?
Tudo sucedeu a tal ponto, de tal modo o segredo foi guardado que contagiaria toda a sua vida pública e se propagaria a todos os que, mais próximos, mais distantes, notaram a sua existência ou até lhe dedicaram refinada atenção. Até uma fotobiografia que, sem indicação de autor, foi publicada em Braga, no mês de Outubro deste ano de 2016, refere que nasceu a 13 de Janeiro, sim, mas omite o ano! Até os registos da Biblioteca Nacional, todos, a consideram nascida na data suposta.
Nascida a Ocidente, movendo o seu trajecto interior espiritualmente para Oriente, em órbita pois no sentido cronológico, indo ontologicamente nesta Terra como o tempo se escoa, talvez assim, concedendo-se a luxúria de dez anos de vida, em acto tão querido que se tornou como que verdadeiro, adiasse o inexorável caminho do fim. Tempo, tempo, apenas tempo precisava quem tanto deu a tantos para tão pouco para si receber. «Como poderia a morte gerar vida, o fim vir antes do princípio», perguntou-se, a propósito do Dia do Grande Frio
[74] .
Termino.
«Maria Ondina Braga morreu do modo como sempre viveu: em silêncio. E se o cerrar dos seus olhos teve o eco de umas breves notícias nos órgãos de comunicação social, de seguida, como sempre, uma vez mais, foi o silêncio».
Eis as palavras do deputado Luís Fagundes Duarte, na sessão da Assembleia da República que, por unanimidade, aprovou a 20 de Março de 2003, um voto de pesar ante a sua morte, de que foi o primeiro subscritor, o voto de pesar n.º 47 da IX Legislatura.
Cumpriu-se o silêncio, o «silêncio das salas de espera da vida. Qual rumo da viagem? O apito dos comboios-de-nunca-chegar (…)»
[75] .