O fim antes do princípio

Faria hoje anos, de uma idade que criou para si e com a qual o mundo coexistiu. Lembrá-la é trazê-la à vida. Eis-me aqui, apaixonado admirador. Gostaria de poder estar fisicamente em Braga onde esta tarde se continua um evento em sua homenagem. Assim, fica aqui a palavra, a festejar a alma que o seu corpo albergou. Longa vida, Maria Ondina!


«Maria Ondina nasceu a 13, uma sexta-feira, de Janeiro de 1922. Sua irmã, Lídia, nascera a 22 de Novembro de 1920. Seu irmão mais novo, Virgílio, nasceria a 2 de Setembro de 1923.
E, no entanto, todas as suas biografias oficiais, dão como assente o seu nascimento não em 1922, sim em 1932, dez anos depois, dez anos, pois, mais nova! E ela própria nunca o desmentiu, antes, com a silêncio cúmplice dos mais próximos, manteve esse mito cronológico, de relativização do tempo, deixando em algumas das suas obras uma subtil pista quanto ao carácter fictício desse facto. A sua aparência diáfana ajudava a dar verosimilhança à circunstância.
Hoje o assunto está esclarecido. Devo a Luís Manuel Braga, filho de José Virgílio Braga, irmão de Maria Ondina a confirmação, a 10 de Fevereiro de 2008, deste facto, o que tornei público no blog que lhe dedico, a 13 de Agosto de 2012 [ver aqui]. A 7 de Junho desse ano, ao encerrar a escrita da sua tese de doutoramento, em Paris, sobre a escrita de Maria Ondina, Filomena Paula Pereira de Iooss, após ter consultado a certidão de nascimento da autora, daria como assente a data verdadeira. Agostinho Domingues. em artigo publicado no jornal Correio do Minho a 7 de Março de 2014 menciona que «a barcelense Maria de Araújo Silva, vencedora do prémio Ondina Braga, há cerca de meia dúzia de anos, em excelente ensaio sobra vida e obra da escritora, assinala 1922 como data de nascimento» [ver aqui].
Curioso é, porém, que, mau grado estas rectificações, a data de 1932 tenha ficado, não só como menção oficial um pouco por todo o lado, mas até na memória dos mais próximos que não concebem outra nem acreditam ser possível. A ficção triunfou sobre a verdade. 
Nascem daqui perguntas múltiplas.
Primeiro o como sucedeu isto? Em artigo publicado na Revista de Macau em 2010, Filomena Iooss explica que tudo nasceu, segundo familiares, quando em 1979 a Enciclopédia Verbo se enganou na sua data de nascimento e no verbete respectivo retirou-lhe dez anos de vida. O facto foi-me confirmado também por um seu sobrinho, sem este pormenor de ter sido este livro a partir do qual surgira o equívoco. 
Mas, explicada a génese do erro, fica o erro esclarecido? Não. É que em aberto continua saber-se porque se aproveitaria Maria Ondina de tal lapso. Vaidade feminina? É pobre explicação. Ânsia de viver, roubando ao tempo o tempo já ido? 
Ou será que tudo terá que ter uma explicação e não haverá espaço para a perplexidade, o espanto, o insólito sem motivo? 
Tudo sucedeu a tal ponto, de tal modo o segredo foi guardado que contagiaria toda a sua vida pública e se propagaria a todos os que, mais próximos, mais distantes, notaram a sua existência ou até lhe dedicaram refinada atenção. Até uma fotobiografia que, sem indicação de autor, foi publicada em Braga, no mês de Outubro deste ano de 2016, refere que nasceu a 13 de Janeiro, sim, mas omite o ano! Até os registos da Biblioteca Nacional, todos, a consideram nascida na data suposta.
Tento não uma explicação mas uma interpretação que torna o erro em vida: nascida a Ocidente, movendo o seu trajecto interior espiritualmente para Oriente, em órbita pois no sentido cronológico, indo ontologicamente nesta Terra como o tempo se escoa, talvez assim, concedendo-se a luxúria de dez anos de vida, em acto tão querido que se tornou como que verdadeiro, adiasse o inexorável caminho do fim. 
Tempo, tempo, apenas tempo precisava quem tanto deu a tantos para tão pouco para si receber. «Como poderia a morte gerar vida, o fim vir antes do princípio», perguntou-se, a propósito do Dia do Grande Frio [1]

[1] A China fica ao lado, página 192.»

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Excerto de uma comunicação que aguarda publicação, feita na Biblioteca Nacional, a 3 de Novembro de 2016, no âmbito do Forum do Livro de Macau, a convite da Associação dos Amigos do Livro de Macau.

Amadeu Baptista: Ondina

Prémio Literário Maria Ondina Braga referente ao ano de 2017, Amadeu Baptista editou pela Lua de Marfim o seu livro de poemas. Chamou-lhe Ondina. Um de tantos que desde 1982 vem publicando. Teve a gentileza de mo enviar e, de súbito, a surpresa, a acanhar-me, de ver que o livro me era dedicado.
Ao longo da obra, eis Maria Ondina como se sopro da sua alma por ali esvoaçasse, peregrina. E não são os locais e a sua memória, mas os sentimentos e as sensações que ali se surpreendem, nesta biografia em verso, história do ser interior extraída do que escreveu: «quem me quiser seguir só tem que seguir este rasto/inequívoco de palavras equívocas/que não tenho onde guardar» escreve o poeta como se ela o tivesse dito.
Leio, e em cada linha vejo um dos seus livros, onde tudo disse de si, assim se decifre o modo: «à minha mesa de trabalho/tudo hei-de dizer/com as precárias letras/ que me hão-de cair ao chão/quando partir, definitivamente/deste mercado nocturno/onde me abasteço».
Livro poderoso, abre poderosamente: «Ficam-me os olhos nas cracas/sob a substância escura dos rochedos».
Volto à dedicatória impressa. Dediquei este blog a Maria Ondina Soares Braga sem motivo outro que não a sua própria pessoa. Não sou erudito, académico ou sequer estudioso. Devo ao Rogério Beltrão Coelho  texto revisto do que disse na Biblioteca Nacional num encontro sobre a sua escrita. Prometi voltar ao seu espólio, em Braga. No meio do formigueiro de obrigações que me povoam os dias e angustiam as noites, sinto frequentes remorsos de não vir mais vezes aqui, como se a visitá-la. Sucedeu hoje, agora que mais um ano começa. Obrigado Amadeu Baptista. Comove viver o que me deu a viver.