Lendo por amor

Eu conheci um Macau miserável de ganância, nojento de rapacidade, repugnante de medíocres vaidades. Eu conheci o Macau dos pequenos burgueses ávidos de consumismo, os esganados de poder, os sedentos do ter. É por isso que ganhei amor a Maria Ondina Braga, por ela ter vivido no mundo de quem é, indiferente ao mundo de quem tem. Como lê-la hoje me enche de remorsos de uma vida por haver! Leio-a, como se me fosse possível expiar-me do pecado de nem ter visto que ela existia, amando-a enquanto viveu.

Na soleira da porta

Há tantos dias sem a ler e a transportar comigo o seu livro, ainda o mesmo. Maria Ondina é a escrita no feminino, um feminino meigo e subtil, feito do intervalo entre os sentimentos e as paixões, o jardim da suavidade, a aspereza da solidão. Sento-me com ela esta noite, mulher para quem os «sonhos eram sempre calmos, sonhos de quem de dia cansa o corpo e não fala de si a ninguém». Estamos na soleira da porta da vida, tranquilos e connosco pacificados.

Num pedaço de papel

Estava mesmo ao lado do Tribunal, era a Biblioteca Teixeira-Gomes, porque ele nasceu em Portimão. E nela encontrei um único livro da Maria Ondina Braga, logo por acaso aquele que eu ando a ler, logo por coincidência na edição que não é a que tenho, para grande surpresa com uma nota introdutória do Tomaz de Figueiredo. Nesta altura ela assinava só como Maria Ondina. Era tarde, doíam-me os pés, o corpo pedia paragem, a cabeça ar fresco. Mas um desejo irreprimível, o de ler o que por ventura não lerei tão cedo, levou-me a sentar-me num canto livre de uma mesa, pedir um pedaço de papel e anotar, numa letra gatafunhada, este momento. Tomaz de Figueiredo pergunta-se: «Apresentar este livro? Mas um livro destes? Apresentá-lo só o apresentaria se a cada leitor aqui o chamasse e o lesse». Eu estava na rua, vinha do tribunal, era tarde, doíam-me os pés, o corpo pedia paragem, ele chamou-me para num canto livre daquela mesa ler-me a Maria Ondina, a Estátua de Sal.

Um penoso esforço

Estes dias parei estupidamente, porque já não aguentava mais de cansaço. Trouxe comigo a Estátua de Sal, precisamente no ponto em que ficara. Fui buscá-lo hoje, ao livro, naquela edição do Círculo de Leitores com uma capa lindíssima que nem sequer se deram ao trabalho de dizer de quem era. Abri a esmo e li: «Precisara, sem dúvida, de cavar o monte de esterco com as próprias unhas. Fora-me exigido um grande, um penoso esforço, e uma vontade de homem». Se há isso que é «uma vontade de homem, eu tenho-a. No mais, é tudo igual, incluindo o cavar o esterco com as unhas.

A casa fronteira

Querendo lê-la, livro a livro, em todos os livros, estou com a Estátua de Sal, o seu terceiro volume em prosa. Parei no capítulo quinto: «nesse tempo eu acreditava que viviam anjos por trás das janelas sempre fechadas de uma casa fronteira à nossa». Parece ingénuo, é ingénuo, mas ao mesmo tempo preparatória deste extraordinário momento: «Se chovia, testa colada à vidraça, entrevia os olhos tristes dos anjos espiando, como eu, entre grades de cristal que iam das nuvens ao chão». Feroz de sentimentos, o que se rir da crença na casa dos anjos. Feroz de afectos, o que nunca teve na vida uma vida a que chamasse «nesse tempo». Feroz de solidão quem não teve, ao menos na infância e por uma vez, uma casa fronteira à sua, para a qual olhasse, com olhos tristes, nos dias em que chovia, as janelas sempre fechadas.

Um amor aqui ao lado

Voltei, por um momento ao livro A China Fica ao Lado, por me lembrar do papagaio de Mister Wang que se alimentava quase só de flores. Era na Pousada da Amizade, em Macau. Mister Wang, o homem «de olhos antigos e cansados», o empregado da biblioteca chinesa, que se descobriu dormia secretamente com Miss Jane, magrinha, feia e professora da escola infantil, um «amor jovem, exacto, e inesperado», precisamente ali, a ranger, provocante, à distância de um tabique, num esconso quartinho do mesmo corredor.

O céu em chamas

Dizem que a Estátua de Sal é um livro biográfico da Maria Ondina Braga, quando eu vejo em todos os seus livros o mundo contado tal como ela o viveu. Estou a lê-la agora e com ela a encontrar-me em Malanje, onde nasci, e com ela a assistir, garoto, extasiado, ao fogo redentor das queimadas, sentindo no crepitar incendiário do capim seco a arder, um estranho som que «lembrava um macabro roer de ossos ressequidos». Daqui a uma horas, largada a leitura, eis-me no «mundo carregado de civilização e de sofisma». Por agora, como se num interregno de paz, leio-a, tendo os seus livros como companhia, a sua memória como um afago.

O pesadelo das mãos furadas

Maria Ondina Braga esteve em Macau depois de em Angola e Goa. O livro A China Fica ao Lado fala da sua estadia na cidade do nome de Deus, e é como se um livro de memórias soltas. Há, que eu tenha reparado, e julgo que o li agora cuidadosamente, uma única excepção com uma reminiscência africana. Vem no conto sobre A Doida, cujos pés «longos, chatos, vítreos, boiavam à flor da água como peixes mortos». A propósito das noites brancas de vigília receosa, as que traziam «sonhos angustiosos», lembra Maria Ondina que «a preta Águeda rezava uma oração ao "pesadelo de mão furadas e unhas encarnadas". Não fossem as mãos do pesadelo furadas, as mãos com que ele nos tapava a boca, e morreríamos abafados». É preciso ter sentido alguma vez na vida esse terror nocturno, genuíno e sufocante, aquele que parece esmagar-nos o coração, como se com um martelo, e nos seca a respiração, como se estoirassem os pulmões, para ter sido capaz de vêr aqui como tudo se passou. Sonâmbulo, acordado em criança a meio da noite, alagado no suor dos pavores sonhados, sei como é. Agora vi como se diz.

O aloucado antiquário

O céu fecunda a terra «entre o pranto da chuva e o sorriso do sol, na apoteose do arco-íris a que todo o chinês devia voltar pudicamente a cara». É no conto sobre o opiómano, o homem da meia vida, o antiquário «aloucado» que vem este instante de magnificência. É nesse conto que aprendo a recusa de inventar uma causa romanesca para tal tragédia. «Não bastaria a frágil condição humana, o desgosto de viver?». Uma mulher que assim sente, mata-se por dentro ao viver. Cita Fernando Pessoa: «sentir a vida convalesce e estiola». A vida, essa meia-vida, aquém do sonho, além da ilusão.

O drama solar

Viajar de comboio permitiu-me ler o A China Fica ao Lado, o livro que Maria Ondina Braga escreveu quando da sua passagem por Macau, como professora e que se editou em 1968, com uma nova edição, aumentada, em Fevereiro de 1974. O 25 de Abril atiraria o livro para o olvido e quase com a escritora para o rol dos ostracizados. Eu falarei aqui deste livro de contos, comovente de sensibilidade e de delicadeza de sentimentos. Mas fixei-me hoje na pequena frase que Natércia Freire disse sobre a autora e que orna a badana esquerda da capa: «creio que nenhuma escritora disse, até hoje, com maior simplicidade e clareza, e em tão poucas palavras, o drama solar de determinadas mulheres - para as quais nem o próprio amor representa um tempo de companhia». É isto que se desfolha neste livro, página a página cruelmente, como no colégio «diante das batatas cozidas, dos pires de açucar, das tigelas fumegantes, sentava-se ao lado de Miss Carol, ao nosso lado (à mesa de toalha de oleado e loiça grosseira) a Tristeza, ou a Pobreza, ou a Solidão, não sei bem. Sei só que era feminina e incomodava». Miss Carol, mestiça de chinesa e de inglês, a professora de Literatura britânica, aquela que «dir-se-ia nunca ter sido nova».

A história dos outros

Há na escrita de Maria Ondina Braga uma literatura vivida, salgada pela dor, salpicada pela delicadeza. Os lugares, tudo o que os povoa e a Natureza que os circunda, estão ali presentes quase se diria obsessivamente. Maria Ondina conta a sua história como se contasse a história dos outros. Lembro-me quando, numa sua crónica sobre Macau, a que chamou O Enigma Chinês, ela reparou nas avós chinesas «quando caminha hesitantes, como sonâmbulas, levando pela mão os netos, a gente não sabe se são elas que guiam os meninos, se são os meninos a conduzirem-nas». É assim que ela nos conduz, quando lemos os seus livros.

O instante de uma vida

Eu sei que é um crime reduzir a complexidade de um ser humano a uns quantos parágrafos de uma árida biografia. Eu sei que é absurdo circunscrever a datas e a momentos vidas inteiras de hesitação e volte-face, em que o futuro parece regredir, as oportunidades anteciparam-se aos insucessos. Mas eu sei, sobretudo, em relação a ela, que é pecado dar uma dimensão exterior a uma alma que viveu no reverso de si mesma, refugiada na intimidade da sua delicada solidão. Confessando saber tudo isto, permitam só este mínimo, que espera que alguém vá completando o pouco que consegui saber: Maria Ondina Soares Fernandes Braga nasceu em Braga em 1932, onde estudou o liceu.
Fez depois o resto dos seus estudos em França, na Alliance Française e em Inglaterra, na «Royal Society of Arts».
Ensinou em Angola, esteve em Malanje, de onde saíu com o começo da guerra.
Ensinou em Goa, de onde saíu com a invasão daquele território em Dezembro de 1961.
Ensinou em Macau.
Esteve quatro meses em Pequim em 1982.
Dedicou à escrita uma vida de recolhimento e de simplicidade. Escreveu prosa e poesia.
Faleceu em Braga em 2003.