Páginas Angolanas de Maria Ondina Braga


Escreveu-se muito sobre a vertente oriental de Maria Ondina, fruto da sua vivência em Macau e na China. Menos quanto à sua breve permanência no então denominado Estado Português da Índia. Talvez por eu ter nascido em Angola, concretamente em Malanje, onde ele esteve em férias, tendo leccionado em Luanda, tenha ensaiado o que apelidei de "Páginas Angolanas de Maria Ondina Braga". O texto sairá no número de Outono da revista "O Escritor", da Associação Portuguesa de Escritores.


Fica aqui um brevíssimo apontamento desse artigo em que procurei acompanhar a sua visão da realidade angolana ao longo da sua escrita:

«A errância de Maria Ondina Braga torna a sua escrita literatura de viagens, só que de uma natureza muito própria, pois sendo itinerário pelo mundo real, é também viagem que se projecta no seu ser delicadamente sensitivo, moldando-o e sendo-nos devolvido por uma refinada e magnífica forma de escrever. E sobre isso há hoje uma florescente literatura [i].

Os estudiosos que, entretanto, surgiram sobre a sua obra, longo tempo esquecida, acentuaram o que Ondina viveu e sentiu no Oriente, sobretudo em Macau e depois na China e extensamente revelou pela obra publicada.

Menos encontramos que haja sido revelado no que escreveu ante a sua passagem por Goa, efémera, aliás, e traumatizante, de onde saiu em Dezembro de 1961, ante a ocupação do território pelas forças da União Indiana, ou sobre o seu tempo prévio em Inglaterra ou em França, sem descurar os itinerários que nem se adivinham e surpreendem como se tivessem sido secretas ou irreais, mas curtas como são todas essas suas viagens.

«O barco partira do Japão. Eu entrara em Hong-Kong. Tínhamos visitado Saigão, Singapura, Ceilão, Bombaim […] E eis que, ao entrarmos no golfo de Adem, se nos deparou África», assim confiou à crónica Jibuti [ii] , surpreendendo quem não descobrira rasto dessas andanças [iii] .

Tantos outros lugares conheceu, como o Brasil, o Egipto, Inverness na Escócia, de que não ficou apontamento que haja divulgado, ou os que visitou, deambulando pelo país, já a residir em Lisboa, no terceiro andar do apartamento na Rua Cláudio Nunes, n.º 38, onde, qual sombra discreta, era, no dizer de quem a viu, rápida a sombra, a mulher que passa. E tudo a terminar na sua Braga natal [iv], já internada num lar.

Há, porém, na vida dessa mulher peregrina, uma Maria Ondina professora em Angola, em Luanda e em viagem a Malanje, sobre a qual redijo este artigo.

Vai nisto um encontro de circunstâncias. Como já disse, a 2 de Fevereiro de 2019, numa conferência proferida em Braga, sua terra de origem e de fim:

Não existe acaso, mas encontro. Maria Ondina Braga esteve em Malanje em 1961, cidade onde eu, perplexo pelo alvorecer da guerra, com a minha infância me desencontrava e com aquela terra onde me tinham dado o ser; estaria depois em Macau até 1965, território aonde eu, para funesto destino, arribaria em Novembro de 1987. O mundo são estas contingências que, cruzadas, geram a improvável mecânica da vida. E são símbolos e por eles se inicia o conhecimento, de que a razão é incapaz de alcançar, nós e laços, como escreveria António Alçada Baptista.

É Maria Ondina despojada, solta, livre, quem chega a África, «sem espírito de apostolado, sem intenções sociológicas, políticas ou financeiras», e com um único propósito «ver a terra», título aliás do seu livro de crónicas viandantes, Eu Vim para Ver a Terra [v], que assina apenas como Maria Ondina, declarando-se, na badana da obra, ser o nome pseudónimo.

Relato de uma terra e não tanto só de pessoas, crónica «da terra e do mar, dos dias, das noites, da chuva, do luar», crónica em que, como muito bem observou Tiago Aires [vi]: «Também as pessoas vão sendo referidas, pessoas que vale a pena conhecer – as gentes de Salazar, as irmãs do Lombe, as alunas, o Velho Roque, a negra que com ela viaja numa ocasião e lhe ensina o valor da solidão, as pessoas nos mercados indígenas como a vendedora de bolinhos de jinguba, entre outras, com quem vai aprendendo sobre a vida. Curioso é notar que, muitas vezes, aliás, estas pessoas estão em estreita relação com a paisagem, com a terra, numa relação de semelhança e de pertença inexcedível»

Terra ainda escassamente povoada de humanos, a que relata, a Natureza a sobrepujar-se na escrita, marcá-la-á para o resto da vida, fluindo em livro após livro, «a terra é a minha apaixonada», diria.


Progressivamente, chegam-lhe ao que nos descreve as gentes que habitarão a sua personalidade sensitiva e reverterá para o papel, seres de que nos traz mais as almas mas tanto dos corpos. Sensível à dor alheia, são retratos de anónimos que a vida feriu, seres minúsculos de importância, mas que ganham grandeza ante o modo como ela os recebe e acarinha.

Escrita de enamoramento, de ascese espiritual e tensão sensual, é por igual uma narrativa magoada e solitária, repleta pela luxuriante Natureza que os sentidos recebem num abraço de funda intimidade.

Está naquele livro inicial o registo de tudo o que viria a traduzir em quanto escreveu sobre essa terra «úbere até ao esbanjamento» [9], e «tem um feitiço a terra – uma lembrança antiga e magoada que nos pertence, que nasce connosco, que nos dói nas veias» [8].

São relatos de episódios, seguramente os marcantes, de Luanda a Salazar [11] [i], de Salazar a Malanje, aonde chega, de automotora, a ler A Brasileira de Prazins, de Camilo Castelo Branco [15], menções ocasionais a lugares, como a Nova Lisboa [45], à missão do Lombe [ibidem], ou alusões à chuva [19], ao cacimbo [23], às osgas [25], à flor da terra [27], à mãe-preta [31], ao mercado indígena [37], ou ao velho Roque [419], entre tantas outras.

[i] Citado de Eu Vim para Ver a Terra. No livro Passagem do Cabo, porque já editado em 1994 e pela Editorial Caminho, esta crónica, com texto já modificado, passou a chamar-se De Luanda a N’Dalatando. É esse o texto e não o aquele primeiro que vem publicado no primeiro volume das Obras Completas, editado pelo Imprensa Nacional página 181. O mesmo sucedeu à crónica De Luanda a Salazar que passou a designar-se como N’Dalatando a Malanje.

Suponho, assim, que na edição da obra completa Eu Vim para Ver a Terra não conheça a luz do dia, substituído que estará pela versão aggiornata Passagem do Cabo [2ª edição] embora aquele livro inicial esteja mencionado no texto prefacial de José Cândido de Oliveira Martins, quando refere nele a autora «deixou exarada, lapidarmente, esta mundividência marcada pelo desejo de conhecer o mundo e pela constante abertura ao outro [11].


+
[i] Para que não haja melindres. Nas referências fica muito por citar entre todos os que escreveram sobre a obra de Maria Ondina Braga e admito que, mesmo algo que tenha sido escrito sobre a sua ligação a Angola não tenha menção. Isso não resulta de demérito, sim do facto de as citações terem surgido numa lógica de a propósito, e não como meio de evidenciar erudição ou de esgotamento académico, pois não tenho aquela nem sou este, apenas um apaixonado, suspeito pois, sobre a pessoa da autora e, por isso, da sua obra. Dedico-lhe, por isso, um blog. E em tempos, aventureiro que fui no mundo editorial, condoído pela sorte da sua obra esgotada e por editar, sonhei publicá-la, a expensas, transcrevendo-lhe os originais. Hoje isso está, e bem, entregue a especialistas e eu retirei-me para o lugar discreto que me compete.

[ii] Jibuti, crónica publicada no livro A Revolta das Palavras. «Estive em Saigão meses antes de rebentar a guerra», revelaria na entrevista a José do Carmo Francisco, publicada na revista Ler.

[iii] No seu espólio em Braga, depositado no Museu Nogueira da Silva, encontrei um bilhete de avião em seu nome datado de 21 de Junho de 1996. Em 1995 esteve em Lyon, a convite da professora Anne Marie Pascal, onde se encontrou com a professora Catherine Dumas.

[iv] O livro Viajar com … Maria Ondina Braga, publicado em 2018 pela Opera Omnia centra-se nos locais da sua existência em Braga.

[v] Eu Vim para Ver a Terra, Agência Geral do Ultramar, 1965. O livro foi editado pela Agência-Geral do Ultramar, em 1965, na coleção Unidade, dirigida por Luís Forjaz Trigueiros.

[vi] Eu Vim para Ver a Terra, de Maria Ondina Braga: a construção do mundo pela crónica, em Forma Breve, 2010.