Publiquei este artigo no último número do jornal cultural Artes entre as Letras. Com a devida permissão aqui fica, como memória.
«Há escritas que parecem cruzar-se com a nossa biografia, sem que, no entanto, suspeitássemos da sua existência. São uma espécie de alma que nos ilumina o espírito, companhia invisível na solidão que se vive no gregarismo.
Senti isto quando soube da existência de Maria Ondina Braga, porque tinha chegado a Malanje, onde eu nasci, na mesma automotora que foi tanta vez nosso meio de transporte até Luanda, ela, porém, a ler Camilo Castelo Branco. Porque esteve em Macau onde eu pernoitei um pesadelo da minha vida intervalar, ela, professora, a viver por antecipação o que seria mais tarde o magnífico livro Angústia em Pequim. Com a diferença de que passou fugazmente pela Índia, na hora da retirada da bandeira portuguesa, como se o infortúnio fizesse gala em persegui-la, exilando-a em perpétuo movimento.
Procurei-a em Braga. Já não conseguiu ler a carta que eu escrevera, a declarar-lhe, como numa confissão amorosa, a minha dedicação, reunida a quase totalidade dos seus livros, lidos, aberto um blogue em sua honra. Recebi então das mãos da família a memória do que fora a sua vida, e a gentileza dos seus dois primeiros e únicos livros de versos. Assinava Maria Ondina, apenas.
Escrevo sobre uma escritora cujos livros não existem, esparsamente reeditados. É uma escrita que não vende, porque intimista, num mercado hoje saturado por banalidades descritivas que dão ao leitor a sensação de que, assim, na vulgaridade coscuvilheira, poderia ser também escritor. Além disso são tristes, e a exploração da dor exige um marketing que a promova e comercialize, contada a doença ao pormenor, forçado o martiriólogo e a promessa reiterada de ser o fim, adiado, porém, o fim para a próxima edição. E falam de um espírito impregnado de misticismo, que se consumiu como um círio, a apagar-se com num crepúsculo do Sol no horizonte, nela a religião das igrejas da terra-mãe a diluir-se, evanescente, no corpo celeste das religiões orientais.
Tal como Irene Lisboa, uma mulher só. Tal como ela, mas ainda mais encerrada no seu quartinho interior, e uma acrescida sensibilidade quase panteísta ao mistério da existência. Tal como ela a dar grandeza ao que é pequeno.
Quando primeiro na Biblioteca Pública de Braga e depois na Biblioteca Pública Municipal do Porto percorri, uma a uma, as fichas do catálogo para reconstituir quanto traduzira, pressenti de quanta escravidão fizera ganha-pão, de quanta privação fora feita a sua vida quotidiana, quanta exploração.
Houve quem a conhecesse a no que é dela o símbolo da existência, partilhando morada na mesma rua, ela uma garota melancólica, Maria Ondina «a mulher que passava», solitária ambas na sua reclusão interior.
Sonhei um dia que poderia patrocinar a edição das suas Obras Completas. Não desisti do projecto. Mobilizei boas vontades. Percebi quantas seriam as dificuldades. Não sei com que capital, sei com que ânimo.
Pensei que seria capaz de um dia escrever do que viveu a biografia interior, ela que quase não teve viver histórico, a pouco se resumindo os factos do que se convencionou chamar a vida real. Tropecei então em testemunhos que se queriam já apoderar da memória, mal disfarçados ajustes póstumos de contas, a injustiça cruel de vivos para com a bondade gentil dos que morreram.
Fui a semana passada a Braga. O Museu Nogueira da Silva inaugurou um espaço que lhe é dedicado. E porá em acesso na Internet o seu espólio, legado pela família, a completar com a correspondência íntima com Jacinto Prado Coelho.
Regressei a casa como se ungido pelo mistério da sua pessoa.
Dela dir-se-á de quanto traduz o multiculturalismo. Dela dirão os que quiserem reconstruir-lhe o ser visível, hoje oficial, retirado do esquecimento, a sua existência feita pequena glória local, enfim reconhecida. A rua é a mesma rua em que nasceu, dir-se-ia as mesmas flores.
Viveu uma África onde surpreendeu o êxtase da Natureza, a glória da festa da chuva, a fecundação da terra, o apelo grave dos mistérios da noite. Viveu da Inglaterra a penumbra da dignidade daquele viver por subtração, a modéstia de haveres como brasão de honraria. Viveu o Macau do porto interior, da miséria humana flutuante, irreconhecível por certo aos que foram ao saque da árvore das patacas.
Maria Ondina Braga. Se Portugal tem uma alma saudosa, ela é a expressão da alma portuguesa. Peregrinou. Regressou a casa, reintegrando-se consigo, reconciliada com Deus. Uma notável escritora.»
Senti isto quando soube da existência de Maria Ondina Braga, porque tinha chegado a Malanje, onde eu nasci, na mesma automotora que foi tanta vez nosso meio de transporte até Luanda, ela, porém, a ler Camilo Castelo Branco. Porque esteve em Macau onde eu pernoitei um pesadelo da minha vida intervalar, ela, professora, a viver por antecipação o que seria mais tarde o magnífico livro Angústia em Pequim. Com a diferença de que passou fugazmente pela Índia, na hora da retirada da bandeira portuguesa, como se o infortúnio fizesse gala em persegui-la, exilando-a em perpétuo movimento.
Procurei-a em Braga. Já não conseguiu ler a carta que eu escrevera, a declarar-lhe, como numa confissão amorosa, a minha dedicação, reunida a quase totalidade dos seus livros, lidos, aberto um blogue em sua honra. Recebi então das mãos da família a memória do que fora a sua vida, e a gentileza dos seus dois primeiros e únicos livros de versos. Assinava Maria Ondina, apenas.
Escrevo sobre uma escritora cujos livros não existem, esparsamente reeditados. É uma escrita que não vende, porque intimista, num mercado hoje saturado por banalidades descritivas que dão ao leitor a sensação de que, assim, na vulgaridade coscuvilheira, poderia ser também escritor. Além disso são tristes, e a exploração da dor exige um marketing que a promova e comercialize, contada a doença ao pormenor, forçado o martiriólogo e a promessa reiterada de ser o fim, adiado, porém, o fim para a próxima edição. E falam de um espírito impregnado de misticismo, que se consumiu como um círio, a apagar-se com num crepúsculo do Sol no horizonte, nela a religião das igrejas da terra-mãe a diluir-se, evanescente, no corpo celeste das religiões orientais.
Tal como Irene Lisboa, uma mulher só. Tal como ela, mas ainda mais encerrada no seu quartinho interior, e uma acrescida sensibilidade quase panteísta ao mistério da existência. Tal como ela a dar grandeza ao que é pequeno.
Quando primeiro na Biblioteca Pública de Braga e depois na Biblioteca Pública Municipal do Porto percorri, uma a uma, as fichas do catálogo para reconstituir quanto traduzira, pressenti de quanta escravidão fizera ganha-pão, de quanta privação fora feita a sua vida quotidiana, quanta exploração.
Houve quem a conhecesse a no que é dela o símbolo da existência, partilhando morada na mesma rua, ela uma garota melancólica, Maria Ondina «a mulher que passava», solitária ambas na sua reclusão interior.
Sonhei um dia que poderia patrocinar a edição das suas Obras Completas. Não desisti do projecto. Mobilizei boas vontades. Percebi quantas seriam as dificuldades. Não sei com que capital, sei com que ânimo.
Pensei que seria capaz de um dia escrever do que viveu a biografia interior, ela que quase não teve viver histórico, a pouco se resumindo os factos do que se convencionou chamar a vida real. Tropecei então em testemunhos que se queriam já apoderar da memória, mal disfarçados ajustes póstumos de contas, a injustiça cruel de vivos para com a bondade gentil dos que morreram.
Fui a semana passada a Braga. O Museu Nogueira da Silva inaugurou um espaço que lhe é dedicado. E porá em acesso na Internet o seu espólio, legado pela família, a completar com a correspondência íntima com Jacinto Prado Coelho.
Regressei a casa como se ungido pelo mistério da sua pessoa.
Dela dir-se-á de quanto traduz o multiculturalismo. Dela dirão os que quiserem reconstruir-lhe o ser visível, hoje oficial, retirado do esquecimento, a sua existência feita pequena glória local, enfim reconhecida. A rua é a mesma rua em que nasceu, dir-se-ia as mesmas flores.
Viveu uma África onde surpreendeu o êxtase da Natureza, a glória da festa da chuva, a fecundação da terra, o apelo grave dos mistérios da noite. Viveu da Inglaterra a penumbra da dignidade daquele viver por subtração, a modéstia de haveres como brasão de honraria. Viveu o Macau do porto interior, da miséria humana flutuante, irreconhecível por certo aos que foram ao saque da árvore das patacas.
Maria Ondina Braga. Se Portugal tem uma alma saudosa, ela é a expressão da alma portuguesa. Peregrinou. Regressou a casa, reintegrando-se consigo, reconciliada com Deus. Uma notável escritora.»