A personagem: a hesitação em ler


Hesitei ler este livro. E, no entanto, há anos que o tenho comigo. Desgraçadamente o exemplar que encontrei tem a boçalidade de um vómito verbal de um qualquer seu anterior possuidor, logo após a epígrafe, que é a de um verso do António Ramos Rosa. Ali ficará a conspurcá-lo, doendo-me cada vez que me defronto com essa profanação.
Porquê a incerteza quanto a lê-lo? Porque e escrita tem tudo de diferente do que Maria Ondina escrevera e escreveria? É verdade. Há aqui uma linguagem directa, o falar que se fala todos os dias a causar sensação epidérmica de estranheza tratando-se de uma escritora que traz ao leitor o sedoso cetim da delicadeza e o áspero burel das alheias dores sentidas como suas.
Por se tratar de um diário escrito na primeira pessoa em que, por isso, o leitor pressente ser aquela a verdade da fantasia que gerara apenas como autora e não auto-biógrafa, aqui jornalista, incerta de amores, trabalhadora nocturna entre vulgaridades, vergada ao cansaço de tradutora como sobrevivência e tanto assim foi, afinal? 
Talvez, porque a imaginaríamos, para a sentir mais nossa, na clausura monacal do seu quartinho de professora, entre meninas de expressão contida e um alma dorida de solidão silenciosa e aqui nada disto sucede, o social irrompe e com ele o que se viveu entre nós em 1974.
Não sei o que diga nesta hora nocturna em que leio.
Sei que, agora que a leitura se consuma, progrido sem sublinhar o que seja que me detenha nesta narrativa tão longínqua do que me fez apaixonar pela sua escrita. 
O quotidiano secou nela a rosa da candura. A realidade empobreceu-a. 
Sonha-se o amor como o que se oferecer, não imaginando o aquém que foi aceite. Também aqui, é esta a história da personagem.